João Gonçalves, nos anos 70, era o rei do forró de duplo sentido e Genival Lacerda seu principal intérprete e cliente contumaz (no novo CD de Lacerda, há três composições dele). A malícia das letras fez de Gonçalves um dos compositores mais visados pelos censores da ditadura militar, porém o forró é ignorado pelos historiadores desse fase plúmbea da cultura brasileira. "Eu mandava numa faixa de trinta músicas para liberarem doze. Minha música era folclore, cultura da nossa terra, não tinha nada a ver com o AI-5 lá deles, mas passaram a me perseguir." Ele compôs para muitas estrelas do forró. Marinês e Dominguinhos estão entre elas. Gravou uma dúzia de LP's, sempre na linha da polêmica "A Minhoca". “Eu faço duplo sentido, tem uns aí que fazem pornografia. Fiz também músicas sérias, como "Um Lugar Ao Sol", gravada por Dominguinhos”.
Nascido numa família humilde, na zona rural de Campina Grande (PB), aos oito anos já vendia amendoim e engraxava sapatos nas ruas da cidade. "Uma vez, Marinês foi minha freguesa. Ela ia se apresentar na Rádio Borborema e queria pintar os sapatos de branco. Passei uma tinta safada, que desbotou enquanto ela cantava. Contei essa história a ela muitos anos depois", recorda.
Ele não sabe explicar como baixou nele o espírito da música: “Eu fazia umas paródias, imitava Orlando Dias, fiz 'iê iê iê', até que comecei a compor forró", lembra. O primeiro grande sucesso dele foi "Severina Xique-Xique", em 1974. "Apresentei a música a Zé Calixto e a Marinês, eles acharam pernóstica." Genival Lacerda gravou o xote, recebendo a parceria, uma prática até hoje bastante comum na relação entre cantores e compositores de forró. "Comecei a ganhar muito dinheiro, já morava em São Paulo (SP). Comprei um carro e sofri um acidente que me deixou de muletas por um bom tempo. Sempre fui desmantelado, gastei demais com bebidas e mulheres", confessa.
Aos sessenta e cinco anos, João Gonçalves mora num subúrbio de Campina Grande, com a mulher e uma filha (outros oito filhos já casaram). Desde meados da década de 80, ele está sem gravadora (finalizava, no início de junho, um CD, independente, intitulado "Passado e Presente Musical de João Gonçalves"), mesmo assim consegue viver razoavelmente bem com o que recebe de direitos autorais.
Sua mágoa é ser pouco lembrado em sua terra natal: "Fiz muita música para Campina, mas aqui não me dão valor, lá fora sempre tive mais apoio", queixa-se. A entrevista acontece em um escritório improvisado em um quarto, no primeiro andar de sua casa. Em cima de um birô estão todos seus LP's (nenhum em catálogo). O senhor de cabeleira cheia, magro, falar pausado, nem de longe lembra o fescenino autor de "Ás De Copas", "De Vara Na Mão", "Mata O Véio, Mate", "Ainda Morro Disso" e "Galeguim Dos Ói Azul". "Sofri muitas decepções, ganhei dinheiro, hoje não tenho nada, nem quero. Eu quero é viver até o dia de ir, que todo mundo vai."
(Fonte: Jornal do Commercio Online, 2001 - revisada e adaptada.)
Nota: João Gonçalves, "O Rei do Duplo Sentido", completa setenta e nove anos de idade no próximo dia 29 de maio e ainda está na ativa, gravando e cantando.
Faixas:
01 Mate O Véio, Mate
02 Bicho Macho
03 Criação De Cágados
04 Vendedor De Nabo
05 Rosa Do Cume
06 Eu Só Desejo O Bem
07 Te Vira
08 Denúncia
09 Boa De Buraco
10 Chá De Mussambê
11 Não Solte O Rabo
12 Oitizeiro
13 Zezé
14 Só Eu Fico Aqui
15 Trigêmeas Do Velho Dão
16 Linda Loirinha
17 Papo De Malandro
18 Peão De Obra
19 Enxuga Gelo
20 Boi Que Late E Boi Que Mia
21 Quem Ama Jamais Esquece
22 29, 30
23 Vou Morar No Mato
24 Eu Vi Estrelas
25 O Macaco
26 Xuxu Para Um Xuxu
27 Maria
28 Olhar Feiticeiro
29 O Pão Do Pobre
30 Observação
31 Forró Em Água Doce
32 Vou Pra Macapá
33 Suíça Brasileira
34 Deus Está No Céu
35 Coisas Que Não Voltam
36 Jararaca
37 Aproveita A Vida
38 Fusuê
39 Operação Plástica
40 Saudades De Minha Terra
41 Lagartixa
42 Sentimentos De Mãe
43 A Presença Da Sua Ausência
44 Onde Você For Eu Vou
45 É Despeito
46 Gaúcha De Lar Vermelho
47 Lembrança Do Falecido
48 Botequim Pra Gente Bem
49 O Tempo Te Dirá
50 Falso Picasso